O Natal dos que sofrem

Gilvan Freire

As desventuras, dessas que se abatem sobre as pessoas, às vezes a vida inteira, ou que ocasionalmente afligem os humanos, ainda que dolorosas demais, não servem para desencontrar a criatura do Criador. Fosse assim, em sentido bem menos representativo, isso levaria a pais e filhos se desconhecerem quando as tragédias entrassem dentro de casa e retirassem de uns ou de todos o prazer da vida.

É verdade que as tormentas têm grande força destruidora e são capazes de reduzir a vida a pó. Mesmo quando as pessoas sobrevivem, quase sempre fica uma marca dessas tempestades tenebrosas que desalojam seres como quem devasta objetos e coisas.

De qualquer forma, a raça humana parece ser um objeto natural dessas fúrias inexplicáveis que colocam a felicidade e a infelicidade em pólos extremos mas vizinhos. Um olhando para outro, perplexos, sem saber quando vão se alternar no comando da vida. Nesse sentido, os humanos são seres dependentes, sujeitos a fatos e efeitos sobre os quais têm pouco ou nenhum poder de influência. Ninguém é dono absoluto sequer de si mesmo. Mesmo quando se ache.

Mas o grande problema não são as tragédias inevitáveis, porque essas são imprevisíveis e dominam com a intolerância de quem não admite resistência. Por isso, a vida é precária e nem sempre permeada de grandes e bons instantes como todos desejam. Grave problema, porém, é a memória, especialmente a memória afetiva, porque ela registra acontecimentos que doem por tempo ou por anos a fio. Como ser feliz com a infelicidade dos outros?

AS DORES DOS OUTROS SÃO NOSSAS

Ninguém poderá julgar-se imune às tormentas ou distante das crises humanas. Tudo parece pertinho. Ou porque está dentro de casa, na família ou nos laços sanguíneos, ou porque está em cada um mesmo. Ou no ‘próximo’, esse intruso social indispensável, necessário e perturbador. Pelos olhos dos outros, nós também somos esse intruso. Nisso, todos são iguais. Todos são falíveis diante de uma lei superior que não dar direito à desobediência. Só os dormentes vivem sem dores. Mas eles existem.

Somente os que nasceram deserdados do sentimento da clemência e desprovidos da dor afetiva é que não saberão avaliar o quanto sofre o ‘próximo’, porque sofre e até quando sofrerá. Sem memória afetiva, o homem é um bicho carniceiro que só fareja escombros humanos. Há homens assim – essa é uma tragédia a parte no curso da humanidade. Senhor, livrai-nos dos inclementes!

Há atitudes que devem ser tomadas para amenizar esses aspectos dramáticos da vida. Uma delas é compreender que nós próprios somos o ‘próximo’, aquele que está sujeito às desventuras dos outros. A outra é não desprover-se da memória afetiva, porque ela, embora incômoda, ajuda a sentir as dores do mundo que, em alguma hora, pode ser encontrada no lugar onde se mora, e não apenas no mundo onde se habita por tão pouco tempo e onde todos são anônimos comuns e pretensiosos demais.

Não há razão para a fuga quando estão em jogo os dramas existenciais alheios. Ninguém foge de seu destino e nem se desvia do destino dos outros, convivendo no mesmo planeta.

É bom lembrar agora a história da Criança que nasceu em mistérios insondáveis e mal chegava ao mundo e já era perseguida de morte. E nem teve como nós o direito de viver muitos natais. Por causa dele, nós temos.

Qualquer que seja o sofrimento e a dor, ou os desenganos com a espécie humana, todos temos parte dessa lembrança de Cristo. E também não faltará quem, num certo momento, queira nos crucificar numa cruz, apenas de forma diferente.