Maconha medicinal

Cannabis: para MPF, atuação da sociedade civil é exemplo de controle social

Na quinta-feira, 27 de abril de 2017, a 2ª Vara da Justiça Federal na Paraíba determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorize a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) a cultivar e manipular a planta Cannabis.sp, exclusivamente para fins medicinais. A decisão foi dada em conformidade com o parecer do Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB), que opinou pelo deferimento do pedido da associação. Conforme a decisão, a produção deve ser destinada apenas aos pacientes associados ou dependentes dos associados que foram listados pela associação na petição inicial.

O MPF credita a vitória à atuação dos pacientes e suas famílias, “que se organizaram, se associaram e assumiram o protagonismo da própria história. Eles demonstraram que é possível a sociedade exercer o controle social numa democracia participativa”, declarou o procurador regional dos Direitos do Cidadão na Paraíba, José Godoy Bezerra de Souza.

A decisão é inédita no país porque é a primeira vez que uma associação conquista o direito de cultivar e manipular a cannabis para fins terapêuticos. “Muito mais que uma vitória judicial, nós estamos diante de uma evolução social”, comemora o advogado dos pacientes, Yvson Cavalcanti de Vasconcelos. Para o advogado, esse passo dado é “a quebra de um paradigma, onde a cannabis é vista como uma droga que só traz malefícios. Contudo, agora inicia-se uma nova era, em que a cannabis é reconhecida como meio importante de tratamento para diversos males que afligem centenas de famílias”. A expectativa do advogado é que o processo transcorra com tranquilidade e que, ao final, a Justiça confirme em sentença de mérito os efeitos da tutela antecipada recentemente.

A ação ajuizada pela Abrace em 19 de janeiro de 2017 trazia um pedido de urgência, em razão dos associados dependerem do uso continuado da substância para a manutenção da saúde. Como o produto é importado, o preço elevado é um obstáculo para as famílias – muitas vezes intransponível. Consta em inquérito instaurado pelo MPF/PB, que há famílias que contraíram pesadas dívidas e se desfizeram de inúmeros bens para conseguir comprar o produto importado. Outras organizaram rifas e eventos para obter recursos adicionais, mas continuam a enfrentar profundas dificuldades financeiras.

Na época em que a ação foi proposta, a Abrace listou 151 pacientes associados, sendo eles próprios portadores de graves enfermidades ou responsáveis por pessoas nessa condição. “Quando entramos na Justiça, tínhamos um pouco mais de 150 pessoas, algo em torno de 200, mas como muitas pessoas não mandaram a documentação a tempo, houve muitos retardatários que não puderam entrar na ação”, relatou Cassiano Teixeira, presidente da Abrace.

De lá para cá esse número cresceu. “A gente abraçou muitos pacientes que vinham dos médicos, de universidades, de pesquisas, alguns indicados pelas mães e hoje temos mais ou menos 400 pacientes”, revela. Segundo Cassiano, além dos retardatários que não puderam entrar na ação, houve outros que desistiram ou mudaram de marca do produto. “Isso deixa essa outra turma na ilegalidade e a gente não pode deixar de atendê-los, sob risco de morte dessas pessoas”, admite.

Em razão da repercussão da decisão judicial, também cresceu o número de solicitações para novos associados à Abrace. “A gente já esperava esse tsunami de novas entradas na associação. Prevendo que iria haver um volume alto de pacientes que a gente não conseguiria atender de uma vez só, foi criada uma lista de espera. Agora, quando os responsáveis pelos pacientes vão se cadastrar, eles entram numa lista de espera por ordem de chegada. Hoje, essa lista deve ter umas 68 pessoas”, informou o presidente da associação.

Associada da Abrace, a funcionária pública Sheila Geriz é mãe de Pedro, 7 anos. Ele teve Síndrome de West, que piorou e se transformou em Síndrome de Lennox-Gastaut. Segundo Sheila, após o tratamento com o Óleo Esperança, extraído da cannabis, o quadro de Pedro evoluiu a tal ponto que ele não mais apresenta o traçado do eletro característico de nenhuma síndrome. Hoje ele tem uma epilepsia focal e encefalopatia moderada. “A cannabis tirou Pedro do diagnóstico de Síndrome de Lennox-Gastaut”, festejou a mãe.

A notícia – Sheila Geriz contou como as famílias ficaram sabendo da decisão: “Nós temos uma relação muito próxima com o Ministério Público. Quando eles souberam, logo nos avisaram e foi aquela festa. A gente ficou muito contente, fazendo festa com o Ministério Público Federal, que para nós é um parceiro desde sempre nessa luta”, relatou. Além de associada da Abrace, Sheila também é vice-presidente da Liga Canábica Paraíba, associação sem fins lucrativos, criada a partir da luta dos pais e familiares de crianças com epilepsia de difícil controle.

Para o presidente da Liga Canábica Paraíba, Júlio Américo Pinto Neto, a notícia trouxe esperança “porque abriu um caminho para a superação do preconceito, do estigma e da demonização dessa planta”, explicou. “É como se a Justiça estivesse reconhecendo o poder medicinal e o valor que essa planta tem para a população, principalmente para aqueles que sofrem com tantas patologias crônicas, porque não é só epilepsia, mas alzheimer, parkinson, câncer, dentre outras que fazem tanta gente sofrer. O caminho foi aberto para que essa planta possa ser usada para todas as pessoas, principalmente as mais pobres e necessitadas”, acredita Júlio Américo.

“Foi uma alegria muito grande”, relembrou a mãe de Pedro. “Para mim, pessoalmente, foi uma sensação de liberdade. Liberdade de poder chegar nos lugares e dizer que meu filho toma um óleo produzido aqui. Liberdade de poder conversar com outros pacientes no consultório da neurologista, quando eles perguntam, porque muitas vezes, a gente não podia nem falar, nem orientar. A gente trabalha sempre com medo, sempre achando que a qualquer momento todo o empenho, todo o dinheiro, todo o trabalho investido na Abrace iria por água abaixo. Aquele medo de a qualquer momento chegar uma batida policial, queimar as plantas e causar um grande prejuízo. Saber que a produção do óleo está autorizada e vai ser regulamentada em breve, foi uma alegria para todos nós”, contou.

Segundo Cassiano Teixeira, a reação dos associados ao saberem da decisão judicial favorável foi “incrível”. “A decisão era muito esperada e eles tinham medo que a gente perdesse o direito e que as crianças ficassem sem os produtos. A gente teve aquela epifania, aquela coisa tão esperada, tão sonhada. Teve festa, bolo, muitas mensagens de agradecimento, grupos de oração, cervejada, teve tudo. A gente está muito feliz. Para mim, particularmente, ainda não caiu a ficha, pelo tamanho da nossa responsabilidade. Estou esperando passar essa agitação para ter aquela sensação de leveza e de tranquilidade. Talvez com a decisão final”, relatou Cassiano.

Abrace & Liga Canábica – A Abrace e a Liga Canábica Paraíba são duas associações, em João Pessoa, que se ajudam reciprocamente. O foco do trabalho da Abrace é o cultivo das plantas, a produção dos óleos e o apoio às famílias, no sentido de orientar como usar os óleos. Já o foco da Liga Canábica é o aspecto político da questão. Enquanto a Abrace orienta as famílias sobre como encontrar um médico (a associação tem uma lista de médicos em todo o país que prescrevem o Óleo Esperança), a Liga luta pela criação de políticas públicas que facilitem o acesso à cannabis, seus extratos e óleos.

Atualmente, há pacientes no Brasil inteiro que usam o óleo produzido pela Abrace. A associação tem mais pacientes que a Liga, que também tem pacientes beneficiários do óleo, mas inclui entre seus associados pessoas que, apesar de não terem necessidade de usar os extratos da cannabis, simpatizam com a causa, acreditam na proposta da Liga Canábica, apoiam a associação, a exemplo de professores, advogados, artistas e aposentados que se engajaram na luta.

De acordo com Sheila Geriz, a Liga Canábica pretende criar uma cultura de acolhimento aos pacientes, quebrar preconceitos e aproximar as pessoas da cannabis, como uma planta medicinal, usada durante muitos anos no Brasil. “Nós entendemos que é uma planta medicinal de uso tradicional e que as pessoas precisam compreender isso e reivindicar o retorno a esse uso tradicional. O trabalho da Liga é criar políticas públicas, intervir junto aos médicos, gerando um ambiente de informação e de aproximação com a planta cannabis e os seus efeitos medicinais”, explicou.

Não é canabidiol, é cannabis – Conforme explica a vice-presidente da Liga Canábica, como o canabidiol é somente uma das substâncias da Cannabis.sp., o termo mais apropriado para se referir à luta das famílias é ‘cannabis’. “Hoje em dia, a gente usa o termo cannabis mesmo, porque os nossos filhos não usam apenas o canabidiol, mas usam óleos que são extraídos da planta e esses óleos contém outras substâncias. Assim, os termos que usamos ao dar entrevistas são ‘óleos de cannabis’, ‘óleos de maconha’, ‘extratos de cannabis’, ‘extratos de maconha’, orienta.

Política pública – Para Júlio Américo, embora essa decisão não seja definitiva, ela já é um grande passo. “A gente quer que isso saia do campo do Judiciário e se torne política pública que dê acesso às pessoas”, defende. Júlio espera que seja regulamentado o cultivo por parte de associações, entidades de economia solidária, cooperativas, e, principalmente, que haja incentivo às entidades sem fins lucrativos, à produção por entes públicos, como universidades públicas, institutos de pesquisa de caráter público, para que possam produzir, “porque a gente quer dar o caráter social à cannabis, para que não se explore o SUS, como vem sendo muito explorado, através de grandes empresas, multinacionais, a indústria farmacêutica”, alerta.

“Nós queremos que a população tenha acesso, através de políticas públicas geradas a partir de um olhar que não tem o lucro como referência, mas, sim, a saúde e a qualidade de vida das pessoas”, defende o presidente da Liga Canábica e complementa: “Essa é a nossa expectativa, que se regulamente o cultivo nessa perspectiva e que a regulamentação conte com a participação ativa de todos os envolvidos na questão, principalmente, os pacientes, e com poder de decisão, porque são os grandes interessados, e as decisões vão ter reflexo na vida deles. Então é isso que a gente espera do poder público, dos legisladores do país, da Justiça e da população”, conclui.

Próximos passos – Enquanto o julgamento do mérito da ação segue o trâmite processual, a Liga Canábica cumpre sua agenda de atuação política. Vários eventos estão previstos para ocorrer ainda em 2017. No dia 12 de maio, será realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Paraíba sobre o tema. “Pela primeira vez na história da Assembleia, será discutida a cannabis para fins medicinais”, comemorou Sheila Geriz. “A nossa ideia é sair de lá com o encaminhamento de proposta de um programa estadual de utilização de cannabis para fins medicinais, revelou a vice-presidente da liga.

Outra frente de atuação se dará com a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde, segundo Sheila Geriz, já há uma abertura nesse sentido. “Nós estamos trabalhando numa parceria para que a universidade cultive a cannabis, produza os óleos e comece a fazer estudos clínicos com os pacientes que já utilizam os óleos, e que haja uma produção também pela própria UFPB”, adiantou.

Também no dia 22 de maio, a Liga Canábica vai realizar na UFPB um evento com o diretor do filme ‘Ilegal’, que conta a história das primeiras famílias que começaram a usar a cannabis. Será um seminário de um dia sobre cannabis para fins medicinais.

Com relação à classe médica, Sheila informa que a Liga está organizando um evento para o segundo semestre de 2017. “Será um evento direcionado aos profissionais da área de saúde. Vamos trazer alguns médicos de referência no estudo da cannabis para tentar aproximar os médicos dessa ciência nova e desmistificar um pouco a questão do preconceito, do medo da planta”, explicou.

Produção nacional – Atualmente, por meio do Inquérito Civil nº 1.24.000.001421/2014-74, o MPF/PB busca estabelecer diálogos e tratativas com entidades públicas, entre elas a própria Anvisa, para fomentar a produção e o fornecimento nacional de extrato medicinal de Cannabis sp.

Ações ajuizadas na Paraíba – O inquérito é instruído com pesquisas científicas e laudos que atestam o uso medicinal da Cannabis sp. e sua eficácia terapêutica. A partir desta constatação e atuando em favor de grupo de crianças e jovens portadores de patologias neurológicas, o MPF/PB moveu duas ações civis públicas (nº 0802543-14.2014.4.05.8200 e nº 0802271-83.2015.4.05.8200).

A primeira ação pedia que a Anvisa e a União se abstivessem de embaraçar a importação de medicação contendo a substância canabidiol. A ação obteve vitória em decisão liminar na 1ª Vara Federal da JFPB e foi confirmada na sentença. A sentença foi mantida integralmente pela Terceira Turma do Tribunal Federal da 5º Região (TRF5) e, atualmente, enfrenta Recurso Especial da União e Anvisa ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Na segunda ação (nº 0802271-83.2015.4.05.8200), o MPF pediu que fosse determinado à União e ao Estado da Paraíba o fornecimento gratuito e ininterrupto do medicamento para salvaguardar as famílias que não tinham condições materiais de importar a medicação produzida a partir da Cannabis sp. A ação, que tramitou na 3ª Vara Federal da JFPB, teve sentença procedente e também foi deferido o pedido liminar. No entanto, a decisão foi suspensa pelo TRF5, com base na falta de comprovação da segurança e da eficácia dos produtos em questão, o que desobrigaria o SUS de arcar com os custos desses tratamentos. As decisões favoráveis estão com seus efeitos suspensos.

Fonte: MPF