Tragédias em série

Rubens Nóbrega

Dona Francisca jamais imaginou que aquilo poderia lhe acontecer. Muito menos com a sua família, dentro de sua casa, na rua que tinha como a mais tranqüila da cidade e onde morava desde quando se casara, há trinta anos. Mas aconteceu.
De manhã cedo, quando seu filho mais velho voltava da padaria com o pão quentinho para o café da manhã, foi surpreendido por dois homens que o renderam no portão e obrigaram o rapaz a levá-los até o interior da residência.
Tão logo o seu menino apareceu na sala de jantar acompanhado pelos assaltantes, um deles segurando um revólver com o cano encostado na nuca do jovem, a dona da casa botou pra tremer e chorar em desespero.
Mais aflita ainda ficou quando a filha caçula, adolescente de seus 13 ou 14 anos, que acabara de sair do quarto para tomar café, deparou-se com aquela cena e num gesto impulsivo, de alta temeridade, correu para abraçar o irmão.
O bandido que não segurava a arma interpôs-se entre os dois e ordenou que ela ficasse junto da mãe. Depois, perguntou pelo cofre onde, garantiu saber, Dona Francisca guardava dinheiro e jóias.
De fato, viúva de um servidor de nível superior do Ministério da Fazenda, ela recebia pensão razoável e regularmente comprava correntes, pulseiras, brincos, pingentes e outras peças de ouro como investimento.
Assim, sem tentar esconder nem oferecer qualquer resistência ao que parecia ser de conhecimento prévio dos assaltantes, ela levou a dupla até o escritório, abriu um cofre embutido na parede, ‘encoberto’ por um quadro, e entregou o ouro.
Depois de uma rápida conferência do ‘apurado’, aparentemente satisfeitos os ladrões colocaram todo o arrecadado numa mochila de motoqueiro e se encaminharam para a sala, sempre arrastando suas vítimas com eles.
Antes de abrir a porta que dá para o terraço, porém, o tal que parecia ser o dono da arma parou voltou-se para Dona Francisca e anunciou a decisão de levar a menina. “Se a gente não levar, chamam a Polícia, ligeirinho”, disse.
Dona Francisca ajoelhou-se diante deles e de mãos postas jurou que sequer prestaria queixa do roubo. O outro assaltante pareceu comover-se com a súplica. Tanto que imediatamente demoveu o comparsa de fazer a garota de refém.
“Mas tem uma coisa: se chamar Polícia ou prestar queixa, tem como a gente saber. Aí, a gente volta aqui e mata todo mundo”, prometeu. Após a ameaça, os ladrões saíram enfim da casa e fugiram numa moto que os aguardava do outro lado da rua.
O assalto chegou ao fim, mas a agonia de Dona Francisca, não. Pelo contrário. Depois que os meliantes foram embora ela começou a passar muito mal. Tanto que os filhos chamaram um táxi e a levaram para o hospital público de urgência e emergência.
Inexperiência dos meninos. A paciente foi recusada no ato. O caso, disse a moça da recepção, deveria ser resolvido num posto de saúde ou, então, num desses prontos-socorros cardiológicos. “Vocês num têm plano de saúde? Então…”.
O taxista sugeriu irem direto para a clínica indicada pela recepcionista, porque Dona Francisca não parecia ‘nada bem’, apesar do calmante forte que tomara antes de sair de casa. Além disso, estava como se estivesse grogue e ao mesmo tempo ofegante.
Deitada no colo da filha no banco de trás do carro, pouco antes de o táxi estacionar na entrada do pronto-socorro, a mulher parou de arfar. Um médico foi chamado nas carreiras pelo motorista socorrista. Confirmou-se rapidamente o pior.
No dia seguinte, todo mundo avisado, parentes e amigos que os meninos não viam há anos apareceram no velório e muitos ficaram para o enterro. Dona Francisca seria sepultada no final da tarde no jazigo que o marido adquirira pouco antes de morrer.
Foi por volta de cinco e meia da tarde que o cortejo chegou ao cemitério, que horrorizou a maior parte dos acompanhantes do féretro. Aquilo lá parecia mais um lixão ou uma cidade em ruínas, talvez bombardeada por artilharia aérea.
Além da sujeira tremenda desde o portão principal, dentro era difícil ver um túmulo inteiro ou uma lápide com alguma inscrição que identificasse quem poderia estar sepultado. Cruzes e estátuas de santo intactas, então, uma raridade.
Deu trabalho localizar o lugar onde estaria enterrado o marido de Dona Francisca. Ainda bem que um funcionário do cemitério, o único além do coveiro que se encontrava presente no local de trabalho, acudiu com um caderno velho onde anotava quadras, lotes e respectivos proprietários.
Mas, para tristeza e indignação dos familiares da defunta, o que encontraram foi uma vala com ossos expostos. Da caixa de cimento onde o caixão do finado fora guardado sobravam duas ou três fileiras de tijolo, no máximo.
Pior: orientado pelo papa-defunto da funerária, o coveiro abrira um buraco do outro lado do cemitério para resolver aquele sepultamento. Foi preciso um irmão de Francisca dar uma dura nos dois e obrigá-los a fazer o serviço direito.
Fazia o maior breu quando Dona Francisco finalmente descansou em paz, porque o cemitério não dispunha sequer de um lampião, quanto mais iluminação elétrica, toda ela roubada ou destruída por vândalos, ladrões e omissões de quem deveria tomar conta.

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Se você me deu o prestígio de chegar até aqui, deixa perguntar uma coisa: faz alguma ideia de onde poderia ter acontecido uma história como essa?