ENTENDA

A saída de armário forçada, vergonhosa e irresponsável do “Daily Beast”

Gisele Bündchen Desfilando ao som de Garota de Ipanema – Olimpíadas Rio 2016Ser gay é crime em 73 países, em 13 deles passível de morte se comprovado o ato de “sodomia”. De forma irresponsável, deliberada e antiética, um repórter do jornal americano “Daily Beast” decidiu expor, na última quinta-feira (11), a homossexualidade de atletas que competem na Rio 2016.

Alguns vindos de países onde podem ser penalizados, eles tiveram o azar de ser identificados no app gay de encontros Grindr pelo repórter Nico Hines, que publicou uma descrição minuciosa dos competidores no vergonhoso artigo “The Other Olympic Sport in Rio: Swiping” (o outro esporte olímpico no Rio: ‘deslizar o dedo’), de sua autoria.

Retirada no mesmo dia do site do jornal, a matéria provocou uma saída de armário forçada de atletas que, privados de sua intimidade, foram vítimas do amadorismo editorial do veículo.

Antes de excluir o texto, o “Beast” (besta ou fera, em inglês) tentou corrigir o erro excluindo detalhes sobre o desempenho e as características físicas dos atletas citados.

“Estávamos errados”, disse em nota o editor do jornal, John Avlon, ao tentar minimizar a repercussão da gafe do repórter que, por sua vez, provou sua ignorância e falta de compromisso num parágrafo do texto.

Hines escreveu: “Para registro, não menti para ninguém, nem fingi ser alguém que eu não era –a menos que você conte eu estar no Grindr–, uma vez que sou hétero, com uma esposa e um filho. Usei minha própria imagem (apenas do meu rosto…) e confessei ser jornalista tão logo alguém perguntasse quem eu era”. Para ele, está claro, tudo não passava de um jogo de videogame.

Mas Hines não está só nessa lama de preconceito e notável falta de bom senso. Bom exemplo é o caso do cineasta Fernando Grostein Andrade, irmão do apresentador Luciano Huck, que no mês passado foi “descoberto” gay por um colunista de celebridades após “apuração” em redes sociais. Grostein, assumido muito antes da veiculação da matéria, disse à época que “a verdadeira notícia devia ser: ’em 2016, um jornalista acha que ser gay é notícia’”.

Nos últimos anos, a imprensa se vê cada vez mais orientada por cliques. Não é de hoje que a batalha por audiência vem forçando a barra da ética em reportagens apuradas às pressas para subir, causar e quebrar a internet em sites que se dizem de notícias. O que não se leva em conta nessas situações, como é o caso do artigo desastroso do “Daily Beast”, são as vidas em jogo ali.

Tratar com ares de fofoca ou grande descoberta quem é ou não é gay, em especial personalidades públicas, não é só um desserviço como também reforça a discriminação e a homofobia, como se a orientação sexual de alguém fosse notícia. Não é. Muito menos quando isso pode expor essas pessoas a crimes de ódio e à perseguição de governos que penalizam a homossexualidade. Não há graça nem qualquer traço de utilidade pública na empreitada equivocada do site americano.

Em termos de metodologia ou estratégia, a suposta reportagem de Hines teria surtido efeito semelhante caso ele fosse ao Congresso, à Casa Branca, à sede de uma grande empresa, a uma feira de arte. Ele descobriria que ali também homossexuais existem e usam aplicativos de paquera, da mesma forma como muitos também usam o Tinder.

Marcar encontros para revelar gays que por qualquer motivo queiram permanecer no armário é um ato de extrema violência.

Fonte: Folha de S. Paulo