Rubens Nóbrega
Há quanto tempo não via o meu amigo Gui? Trinta anos? Por aí…
Depois de tanto tempo assim, as mudanças de fisionomia, pelo menos essas, seriam perfeitamente aceitáveis, além de presumíveis.
E elas estavam bem visíveis. A cabeleira juvenil a Ronnie Von, sucesso entre as meninas do bairro nos bons tempos, fora devastada por uma calvície radical.
Agora, um bigode farto e branco adornava-lhe o rosto ainda jovial, adequado ao semblante tranqüilo de alguém aquietado como o nosso boêmio jamais foi.
Reparando mais no jeito do que na feição do amigo e, principalmente, na aliança que lhe dourava o anelar esquerdo, deduzi que ele se transformara radicalmente também no modo de ser e ver as coisas.
Tanto que se casara e no mesmo casamento persistia por todos esses anos, para surpresa de todos os seus contemporâneos que apostavam num Gui eternamente solteiro e sempre cheio de mulheres ao seu dispor.
Gui casado! Quem diria, hem? Logo ele, o ‘terror’ do mulherio da Torre, que se orgulhava de ser o predador do bairro, admirado inclusive por nós, seus amigos, pobres e mortais caçadores?
Antes de prosseguir, repasso a distinção que aprendi com o filósofo Mucius: predador caça por diversão; o caçador, por necessidade.
Dito isso, deixem-me contar um feito memorável do nosso Gui. Pois não é que o cara ficou noivo dez vezes antes de encontrar e se amarrar, em definitivo, à sua ‘Prenda’, como ele chama carinhosamente a sua senhora!
Acreditem. Foram dez noivados, e todos festivos. Festas a que a gente ia mais por farra, a partir da terceira noiva, já sabendo que o compromisso seria breve.
Pois saibam que a Prenda interrompeu em definitivo a série que um dia ameacei inscrever no Guiness, o Livro dos Recordes, ameaça da qual o protagonista do possível verbete só fazia achar graça.
Mas graça mesmo ele achou na morena que um dia passou por sua calçada e num estalo lhe instalou uma certeza. “Quando a vi pela primeira, disse pra mim mesmo: é essa que eu quero para ser a mãe dos meus filhos”, contou-me, em nosso reencontro.
Lembra que estava sentado na mureta do terraço de sua casa, na Clarice Justa, esperando a hora do almoço que sua mãe botava pontualmente ao meio dia e meia e que nenhum filho comia se não estivesse à mesa àquela hora.
Faltavam cerca de dez minutos para o almoço, naquele bendito dia, quando a Prenda passou para o colégio, de farda, mas segurando caderno grande ou escarcela de um jeito que cobria o emblema da escola.
Por falta de pista tão valiosa, Gui abandonou o posto e passou a seguir a menina que era pra ver onde ela estudava. E ela tomou a direção da Praça da Independência, onde, “felizmente”, não entrou no Marista.
“Felizmente porque, se ela entrasse, muito provavelmente eu desistiria, porque ali só estudava filho de gente graúda. Na época, era muita areia pro meu caminhãozinho e nem com três viagens eu daria conta”, comentou.
Aliviado, concluiu que a moça só poderia estudar no Estadual de Tambiá ou do Roger. Concluiu porque não deu pra seguir adiante com o estômago avisando que era hora de correr de volta pra casa, sob pena de perder o almoço. Correu, mas não deu.
Teve que se virar forrando com um pão de graxa e refresco de maracujá, lanche contrabandeado da Galinha do Biu por um primo que lá trabalhava de garçom.
Arranjada a sustança para bater a peladinha do dia, deixou o campo por volta de cinco da tarde, quando retornou à sua calçada para vigiar a volta da menina. Teria nova chance de segui-la, dessa vez para descobrir onde ela morava.
Deu certo, mas até certo ponto. A menina tomou a direção do Expedicionários, onde Gui não poderia transitar sem a companhia ou escolta da turma, sob pena de levar uma coça dos desafetos que arranjara nos embalos de sábado à noite.
Mas, determinado a abordar e falar namoro à jovem que lhe dominara todos os sentidos e desejos, à noite e na manhã seguinte recorreu a todos os amigos para saber se algum deles sabia quem era e onde poderia encontrar a sua amada.
Conseguiu alguém que conhecia o suposto namorado de uma possível irmã mais velha da moça. Suficiente. Procurou e achou o sujeito, que pra sorte era mesmo quem precisava ser e lhe ensinou o caminho das pedras, quer dizer, da Prenda.
O virtual concunhado, fazendo-se cupido, marcou o encontro dos dois na missa das sete do sábado próximo. Gui soube depois que ela relutara, inicialmente, mas, como estava mesmo ‘solteira’, sem namorado, concordou em pelo menos conversar.
Não teve conversa. Depois da missa, foram a um assustado na casa de um da turma, com quem Gui combinou um breve apagão durante a dança da música mais lenta e romântica que coubesse e tivesse na discoteca do anfitrião.
O cara fez direitinho. Quando Erasmo Carlos começou a cantar o seu grande sucesso de 1970, o dono da casa foi à ‘caixa de luz’ e baixou a chave no exato momento em que a música chegava ao melhor verso da composição.
O corte na energia calou a voz do Tremendão, mas não a de Gui, que apertou um pouco mais a dama em seus braços e solfejou no ouvido da moça, quase sussurrando:
– Um dia, gatinha manhosa, eu prendo você no meu coração…
Quando a luz tornou, poucos segundos após, no meio do improvisado dancing os presentes puderam testemunhar um jovem casal selando com um beijo o contrato de amor que celebraram naquele momento para toda a vida.