Ao conduzir Luiz Inácio Lula da Silva para um interrogatório forçado, a Operação Lava Jato prestou o favor indiscutível de demonstrar a gravidade da atual situação política.
Assistiu-se a um espetáculo absurdo, errado, mas não convém avaliar o que se passou como um “erro” do juiz Sérgio Moro.
Reescrevendo uma lição universal deixada por um dos grandes mestres da política, é mais razoável reconhecer que a demonstração de truculência foi uma prova de que não é possível fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Outras já ocorreram. Outras ocorrerão. Não duvide.
Através do Ministério Público, a Lava Jato domina a inteligência do Estado brasileiro. Através da Polícia Federal, exerce o poder civil armado, o mais importante em tempos de paz. O apoio absoluto dos meios de comunicação impede a dissidência, criminaliza o protesto, faz chantagem com as consciências que não perderam referências democráticas. Este é o ponto em que o país se encontra, sob um verdadeiro governo paralelo.
É sintomático que todo protesto contra a prisão de Lula esteja sendo tratado – com toda naturalidade – no capítulo da violência, da desordem, da baderna. Desde sexta-feira, a palavra é segurança. Desculpe a simplicidade mas a tese é conhecida desde a fábula do Lobo e o Cordeiro: procura-se culpar a vítima pelo dano causado pelo opressor. Não é vitimização. É covardia mesmo.
A ideia é esta, no caminho de quem pretende “refundar o nosso Brasil”, na inesquecível definição do procurador Carlos Fernando Lima, com uma ambição que, não custa observar, nos leva a Pedro Alvares Cabral e ao país-colônia de 1500. Estamos pensando uma experiência de 500 anos?
Construído com dificuldades conhecidas, no momento atual nosso regime democrático está se desfazendo na falta de respeito pelas garantias democráticas elementares, etapa indispensável de todo projeto de golpe de Estado, qualquer que seja o nome e o pretexto que se queira empregar para uma óbvia tentativa de homicídio institucional.
As prisões, interrogatórios e delações da Lava Jato destinam-se a criar um ambiente de incerteza e terror político, que em toda parte costuma anteceder rupturas institucionais de porte. Mesmo que não se empregue a violência física, repugnante, escancarada, típica dos movimentos fascistas do século XX, pratica-se a violência ritual, que desrespeita e desmoraliza publicamente aqueles que, como Lula, merecem o máximo respeito – não porque sejam superiores a qualquer cidadão – mas porque ocupam outro lugar na história de um país, e seu destino tem implicações e políticas que vão muito além de um horizonte individual. Atingem uma ideia, uma força social.
Foi porque o governo Lula reconheceu essa diferença que, em 2005, Fernando Henrique Cardoso, já ex-presidente, teve direito a prestar depoimento em segredo sobre documentos apreendidos em paraísos fiscais do Caribe. Era um caso no qual um procurador exibicionista – e quem sabe não exibicionista — poderia acusar FHC de tentativa de obstrução da Justiça, pois se tratava de material obtido no interior de uma investigação em curso e que, em vez de seguir seu percurso normal de uma apuração policial, acabou nas mãos do presidente da República. Imagine quantas conexões imaginárias seria possível estabelecer. Mas FHC depôs em casa e ninguém ficou sabendo disso.
Durante o regime militar, outro ex-presidente, Juscelino Kubitschek, foi chamado inúmeras vezes para prestar depoimento em quartéis. Era fotografado na chegada e na saída. Os militares queriam incriminar JK em denúncias de corrupção. Não conseguiram provas, mas num simples decreto, cassaram seus direitos políticos por dez anos.
Você acha que o depoimento de Lula lembra o tratamento democrático recebido por FHC ou a gentileza militar – com um político popularíssimo – depois do golpe consumado?
Será uma transição regressiva?
Você decide.
No Brasil de 2016, vive-se uma situação específica. Embora Dilma Rousseff permaneça na presidência da República, e faça o possível para responder — as vezes em pura coreografia — todo o ritual autorizado pelas funções próprias ao cargo, o poder tem sido esvaziado e já começou a mudar de mãos.
Realisticamente, o termo “situação” não pode ser aplicado a um governo expropriado de boa parte de sua força original. Perseguido e acuado, humilhado e sabotado por atos permanentes de insubordinação e desordem, que partem de instituições que lhe devem obediência política, como a Polícia Federal, ou um mínimo de lealdade e decência, como os aliados do Congresso.
Não faltam braços à versão brasileira de “direita suja” — na correta definição da revista Economist para designar o fascismo de Donald Trump — que abriu mão de todos princípios democráticos para buscar qualquer atalho para tentar um assalto ao poder.
Nessa situação específica, a brutalidade da Lava Jato é o movimento de quem imagina-se capaz de aplicar um golpe decisivo – para convencer seus adversários de que sua superioridade é tão grande, tão absoluta, que não vale a pena resistir. O argumento não é a razão. É o medo.
Esta é a função política do desrespeito, da humilhação.
Fonte: Brasil 247