Acabou o Carnaval e 2016 de fato começou. E o ano chega com uma velha novidade. Ao que parece, está reaberto o debate sobre a regulamentação do aborto no país. Mas foi preciso uma epidemia de zika para o assunto ressurgir do limbo em que foi colocado nos últimos anos por grupos religiosos e pelo oportunismo político das disputas eleitorais.
Nos últimos dias, lideranças como o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, apoiaram abertamente o debate que deverá chegar, cedo ou tarde, ao Supremo Tribunal Federal (STF). O instituto de bioética Anis, de Brasília, já prepara ação junto ao STF para que mães infectadas por zika possam fazer o aborto dentro da lei.
Hoje, apenas em caso de estupro, risco de vida para a mãe e, em casos de anencefalia, a interrupção é permitida. O ultimo tipo só foi incluido após ação similar movida pelo mesmo grupo Anis em 2004. Desde abril de 2012, o aborto de fetos anencéfalos, isto é, com má-formação do cérebro e do córtex (o que leva o bebê à morte logo após o parto) não é mais crime.
Reportagens vinculadas na imprensa mostram que já um aumento de abortos em clínicas clandestinas. É compreensivel a preocupação das mulheres diante da possibilidade de dar à luz a uma criança com microcefalia e todas as limitações que isso pode acarretar na vida desses bebês e de toda a família. O debate, no entanto, não deve ser pautado meramente pelo temor causado pela atual epidemia. A questão é mais ampla e assim deve ser discutida.
Não se sabe ao certo o número de abortos realizados no Brasil. Estudos da Universidade de Brasilia, citados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), chegam a falar em 1 milhão por ano.
Todo mundo tem potencialmente uma amiga ou familiar que já praticou aborto. O debate é difícil porque expõe a hipocrisia de uma sociedade que aborta às escondidas. E onde há ilegalidade, há injustiça – enquanto mulheres de classe média pagam por procedimentos seguros, mulheres pobres arriscam a vida em clínicas clandestinas de fundo de quintal.
Não me parece que ninguém seja a favor do aborto em si. Mas é inadmissivel que em uma sociedade democrática e secular as mulheres tenham suas decisões e o direito ao próprio corpo tutelados pelo Estado. Um Estado cujas regras foram historicamente formatadas por indivíduos homens que nunca carregaram no corpo e na mente as dores e os dilemas dessa decisão.
Há, obviamente, argumentos legítimos e altruistas que falam do valor à vida. Mas se considerarmos o alto índice de mulheres que morrem vítimas de abortos mal feitos, é preciso repensar esse ponto. Sobretudo quando se observam números de países como o Uruguai, que em 2012 mudou a lei para permitir a interrupção de gestações.
No país vizinho, segundo dados oficiais, a desistência de abortos aumentou em 30%, já que antes do procedimento as mães recebem auxílio psicológico e muitas mudam de ideia. Também zerou o número de mulheres mortas em decorrência de abortos mal feitos.
Mas em um Congresso dominado por pastores fundamentalistas e oportunistas políticos a discussão é quase sempre assentada em argumentos religiosos. Ironicamente são esses os mesmos grupos que se opõem a politicas de educação sexual (e gênero) nas escolas.
A esperança de avanços está no STF. Como o Estado é laico e suas leis valem para o mundo terreno, o que se espera é uma justiça humana. Qualquer coisa além disso é mero diversionismo político eleitoreiro.
Fonte: Carta Capital