“Quando entrei e vi o rosto do garçom que me atendia, comecei a chorar, ele não me reconheceu. Mas eu me lembrei de quando ele me enxotava porque dormia na frente do restaurante”, lembra Gleiva Tamang, 24, nepalesa, que com um sorriso no rosto conta sua história.
Órfã de pai, aos 8 anos Gleiva começou a dividir sua moradia entre a casa e as ruas do Nepal. Aos 11 anos, escutou do padrasto que deveria ir embora de casa, pois só dava gastos. Após cerca de dois anos dormindo na rua, Gleiva encontrou um abrigo, o Menina dos Olhos de Deus que, segundo ela, “foi uma benção”.
O projeto, coordenado pelo casal de brasileiros Silvio Silva e Rose Silva, diretores regionais do Menina dos Olhos de Deus, atualmente acolhe 151 pessoas e já resgatou 300 crianças e adolescentes ao longo de sua história, iniciada em 2000 pelo doutor José Rodrigues, presidente da MCM (Missão Cristã Mundial).
A iniciativa tem como objetivo acolher jovens e crianças vítimas de prostituição, exploração de mão-de-obra infantil ou aquelas em situação de risco, seja vivendo em um ambiente hostil ou de muita pobreza.
Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), calcula-se que, por ano, 1.200 mulheres e crianças nepalesas são vítimas do tráfico de pessoas. “Percebemos que grande parte dessas meninas vai para a Índia, por isso decidimos fundar o nosso lar aqui, no local que é o berço dessas crianças”, explica Silvio, que mora no Nepal há 15 anos.
“Atualmente, trabalhamos com 1.421 bolsas de estudos em diferentes distritos do país. Essa necessidade foi notada, pois uma vez perguntei para elas como era a vida antes de serem traficadas e o único ponto em comum foi que nenhuma estudava”, explica o coordenador.
‘Há pessoas em quem podemos confiar’
“Se pudesse conversar com uma menina vítima do tráfico, explicaria que é possível sair dessa situação. Existem pessoas que podem te ajudar. Porque o que falam para a gente no bordel é que ninguém pode nos ajudar. Que ninguém se importa com a gente. Eu falaria para elas acreditarem, terem fé, porque há pessoas em que podemos confiar para sair dessa situação”, relata Anjali Tamang, hoje estudante de psicologia. Seu sonho? Abrir uma escola para poder educar crianças e a comunidade, evitando, assim, o alto número de contrabando de pessoas.
Quem vê a delicadeza em cada palavra não imagina que, aos 11 anos, Anjali foi vítima de um golpe e levada de sua vila, Nowakot, no interior do país, para a Índia. “Eles [os traficantes] me abordaram na minha vila, ainda era pequena, e me disseram que se fosse com eles teria um lugar quente para dormir e comida todos os dias; como não tinha isso, eu fui”, conta Anjali, que também explica que há dez anos no Nepal era comum meninas se casarem a partir dos nove anos de idade, outro fator que lhe causava medo e a impulsionou a fugir de casa.
Após um ano e meio trabalhando em um bordel na Índia, a estudante de psicologia, então com 13 anos, foi resgatada pela polícia federal do país e levada para um abrigo no qual permaneceu por dois anos. Depois foi transferida de volta para o seu país de origem e para a casa do Meninas.
“Ir para a casa do projeto me proporcionou uma restauração física e espiritual”, conta Anjali. Dos momentos que mais a marcaram está o dia que a organização realizou um reencontro entre Anjali e sua família. “Todo mundo chorou. Por vezes eu achava que aquela cena nunca mais seria possível, foi muita emoção”, relembra a jovem.
“Algumas meninas pensam que são sujas após a prostituição, e que a vila não irá aceitá-la de volta. Então quando elas retornam, as recebemos como princesas para ajudar na autoestima”, diz Silvio. O coordenador explica que o trabalho de acolhimento das Meninas dos Olhos de Deus se mantém por meio de doações e que atualmente são quatro casas em funcionamento em diferentes localidades do Nepal, sendo uma apenas para meninos. Segundo Silvio, o índice de garotos traficados é bem menor, porém há muitos que são vítimas da mão-de-obra escrava ou maus-tratos e acabam indo para o abrigo.
A organização conta com a estrutura de uma escola, aulas de inglês, consultório odontológico e aulas de música, o que proporcionou uma grande mudança na vida de Selma Rupa, 21. “Quando era criança, trabalhei em um pequeno hotel e sempre olhava o filho do dono tocando um instrumento, mas sabia que não era digna daquilo, eu era da rua”, diz Selma.
Atualmente, a jovem está produzindo um CD e já tocou em eventos no Japão e no Brasil. “O sonho de estudar e de aprender música estava longe, adormecido. Fui abençoada, a minha vida mudou”, diz.
Silvio e Rose explicam que quando chegaram ao país, em 2000, o sistema de casta do Nepal, tradicional classificação de etnias provinda do Hindu, atrapalhava bastante a evolução do projeto. “Eles acreditam que, se a pessoa está sofrendo, ela merece isso para a sua evolução. É seu carma. Então mostrar essa visão de resgate, de acolhimento, foi uma mudança para eles”, explica o casal de coordenadores. “A casta ainda existe, grande parte das meninas que chegam aqui acham que não são dignas de todo esse conforto. Mas somos uma família e mostramos para elas o verdadeiro significado disso. Que elas merecem isso”, explica Silvio.
E depois?
Quando chegou ao Nepal, o casal pretendia ficar apenas dois anos, mas disseram que as meninas viraram “suas filhas”. Foi então que Rose iniciou um projeto dentro do Meninas, chamado Livres para Voar, no qual as jovens, quando alcançam a maioridade ou uma condição financeira boa para se manterem sozinhas, são guiadas para uma república junto de outras amigas do projeto e lá começam a vida adulta. “Oferecemos os móveis, o suporte e uma ajuda para entrar no mercado de trabalho. Depois disso, elas já andam com as próprias pernas”, explica Rose.
Para Silvio, o projeto está longe de conseguir acabar com o tráfico de crianças e mulheres no Nepal. “Cheguei com esse sonho aqui, mas hoje em dia vejo que é algo bem distante. Não fazemos algo tão grande, porque o tráfico aqui é bem maior. Mas mesmo que seja pouco, fico feliz em poder ver que conseguimos mudar a história de algumas jovens”, afirma.
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