Duciran Farena
Ninguém discute que o Programa Nacional de Alimentação Escolar – responsável por fornecer alimentação aos alunos da educação infantil (creches e pré-escola) e do ensino fundamental, matriculados em escolas públicas e filantrópicas, mediante a transferência automática de recursos federais, é um dos programas mais importantes para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada dos brasileiros em idade escolar.
Este Programa, no entanto, enfrenta uma encruzilhada de difícil superação: de um lado, a falta de fiscalização (ou a insuficiência do controle social) que permite desvios de recursos em municípios grandes e pequenos, mas cujos efeitos são particularmente sentidos nos pequenos, quando a merenda chega a faltar, enquanto corruptos e seus cúmplices enriquecem com a fome de crianças; de outro lado, a tentação da privatização da merenda, que vem sob o nome de terceirização. Com efeito, nas capitais e municípios com maior renda, onde não costuma faltar merenda, é cada vez mais visível o avanço da terceirização, que lesa irremediavelmente os cofres públicos e o Direito à Alimentação Adequada, pela uniformização e pela baixa qualidade da alimentação servida, causada pelo paradoxo de que quanto menos gasta, mais o terceirizado lucra.
A terceirização é um grande negócio, onde todos os envolvidos lucram – o gestor, que se livra dos incômodos causados pela obrigação de fornecer de forma eficiente a alimentação, a empresa terceirizada e seus proprietários, e os fornecedores de gêneros, que encontram bom mercado para a desova de gêneros de baixa qualidade e com data de vencimento próxima. Só as crianças e os cofres públicos perdem.
Toda terceirização traz embutida uma confissão de ineficiência da administração, e um paradoxo – se o mercado pode fazer melhor, porque não entregar o dinheiro aos estudantes para que eles comprem seu alimento na cantina?
No mês de julho foi encerrado contrato com conhecida empresa que desde 2009 cuidava do fornecimento de merenda escolar ao Município de João Pessoa. Reportagem de jornal local trazia lamentos de gestores e diretores contra o encerramento de uma parceria estratégica “que é tendência nacional e internacional” e declarações sobre os prejuízos para as atividades pedagógicas, decorrentes do fato de que as direções das escolas agora terão que se ocupar de aquisição de gêneros, idas a agências bancárias e elaboração de cardápios.
Lamentava-se, outrossim, o fim de apontada economia de R$ 9 milhões por ano, ao lado de explícitos elogios à empresa paulista que antes fornecia os serviços, cuja eficiência era confirmada por inúmeras declarações de gestores e administradores escolares. Tabelas ofereciam ampla descrição das vantagens da terceirização, em logística de distribuição de alimentos, preparo por merendeiras treinadas, etc.
Esta reportagem, no entanto, soava como mensagem publicitária, sem nenhuma menção não só ao posicionamento contrário à terceirização do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Tribunal de Contas da União a respeito da terceirização, como também não tocava em fatos notórios, como os problemas na atuação desta empresa e similares em outros lugares, que renderam inclusive diversas ações na Justiça propostas pelo Ministério Público.
Longe de ser consenso, a terceirização tem sua legalidade questionada, tanto assim que, se a Prefeitura de João Pessoa não renovou um contrato tão cheio de vantagens, não foi por vontade própria, mas porque fora compelida a tanto pelo Tribunal de Contas da União.
De fato, esta “parceria estratégica” não é admitida pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), quando implica em atribuir a terceiros a responsabilidade pela compra de alimentos. O art. 5º da Lei nº 11.947/2009 proíbe a transferência da compra de gêneros alimentícios financiados com recursos federais a particulares. Isto significa dizer que a terceirização só pode se dar com recursos próprios do ente contratante, para a prestação de serviços de distribuição e preparo de alimentos, não para a compra destes, deve ser feita pela própria administração.
Como o Município de João Pessoa havia licitado conjuntamente aquisição de alimentos com prestação de serviços de distribuição e preparo, teve que renunciar à renovação do contrato, para poder voltar a receber as verbas federais do FNDE, que são enviadas exclusivamente para a aquisição de alimentos.
É curioso constatar que a terceirização da merenda escolar, aparentemente, só funciona na base do pacote completo – se envolver também a compra do alimento. Pois é na compra do alimento que a empresa deposita a sua grande expectativa de lucro, adquirindo o mais barato possível. Alimento que depois é rejeitado pelos alunos, indo parar no lixo.
Claro que irregularidades e aquisição de alimentos de baixo valor podem acontecer quando a administração compra e prepara a merenda. Mas nesse caso o gestor que não licita, ou que licita erradamente, sem preocupação com a qualidade, ou aquele que recebe mercadoria em desacordo com a licitação, assume responsabilidade pessoal. No pacote fechado da terceirização, só se vê o produto final – o alimento preparado. E o gestor sempre pode sair-se com declarações de que “notificou a empresa para correções” no caso de qualquer irregularidade.
A terceirização ainda prejudica a diversidade alimentar, pois o alimento deve ser fornecido de acordo com parâmetros nutricionais que são adaptáveis aos hábitos alimentares e necessidades dos alunos, bem como inviabiliza a diferenciação exigida para o atendimento de comunidades quilombolas e indígenas. Enfim, impede o atendimento do percentual legal de aquisição de alimentos de produtores da agricultura familiar, obrigatória, segundo o art. 14 da Lei nº 11.947/09.
A despeito disso, não faltam gestores que defendem aguerridamente a terceirização, agindo como verdadeiros representantes dos interesses das empresas, nem reportagens que assumem, sem rodeios, o lado da terceirização, sem qualquer ressalva quanto a questionamentos, demonstrações claras do poder dos interessados na terceirização. Espera-se que estes interesses não prevaleçam a ponto de impedir a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta proposto pelo Ministério Público Federal e a Curadoria da Educação do Ministério Público do Estado da Paraíba no sentido de que a Prefeitura de João Pessoa não mais terceirize o fornecimento da merenda.