Se a base nacional curricular proposta pelo Ministério da Educação passasse a valer hoje, as escolas de todo o país teriam de fazer uma mudança significativa no ensino de história, especialmente no ensino médio.
Isso porque, atualmente, sem uma ementa “padrão” a ser seguida, as escolas se baseiam fortemente em uma “visão europeia” e cronológica da história: antiga, medieval, moderna e contemporânea –isso além de história do Brasil e da América.
A nova proposta de currículo de história no ensino médio, elaborada por especialistas convidados pelo MEC, vai no sentido oposto. Dá ênfase, por exemplo, à história das Américas, da África e história indígena nos dois primeiros anos do ensino médio.
História antiga europeia, como Grécia e Roma, ficariam em segundo plano. Nem sequer aparecem na proposta curricular do MEC.
O projeto da proposta curricular ainda segue em discussão, de acordo com o MEC, pelo menos até o final do primeiro semestre de 2016.
Mesmo assim, já está tirando o sono dos acadêmicos mais conservadores e dividindo opiniões desde que foi lançado, no início de setembro.
Hoje, as escolas públicas que oferecem ensino médio seguem diretrizes estaduais. As particulares têm liberdade de ensinar o que quiserem desde que não firam alguns princípios “básicos”, que são acompanhados por supervisores do governo estadual.
“Eu não poderia, hipoteticamente, ensinar princípios básicos da teoria nazista”, explica o historiador Silvio Freire, diretor do ensino médio do colégio Santa Maria. “No entanto, se quisesse excluir Idade Média do currículo de história, por exemplo, eu teria liberdade para fazer isso.”
‘EXTRAOFICIAL’
Na prática, o Santa Maria não excluiria o conteúdo de Idade Média do currículo por um simples motivo: o tema aparece recorrentemente em exames vestibulares importantes e no próprio Enem, cujas notas são usadas para ingresso em universidades federais e em algumas estaduais e particulares.
“Sempre digo que existe um currículo extraoficial: são os processos seletivos das boas universidades”, diz Freire.
Muitas escolas preferem seguir a ementa tradicional da Fuvest -processo seletivo da USP, melhor universidade do país segundo o RUF (Ranking Universitário Folha).
É o caso do Bandeirantes, que diz seguir a ementa de história do exame e distribui o conteúdo ao longo dos três anos do ensino médio. A escola tem boa aprovação na USP e também figura entre as dez melhores escolas paulistas no ranking do Enem.
No Dante Alighieri, tradicional escola particular paulistana, o conteúdo de história também segue a Fuvest. “Não posso ignorar a Antiguidade Clássica porque todo ano há uma questão sobre Grécia na Fuvest”, explica Jackson Fergson de Farias, professor do Dante.
Na última Fuvest, de 2015, uma das 90 questões de conhecimentos gerais abordou o aspecto disperso e pouco unificado politicamente dos gregos na Antiguidade.
“A Fuvest realmente tem uma abordagem bastante tradicional”, diz Gustavo Peixoto, coordenador de história da Adaptativa, empresa parceira da Folha na elaboração dos simulados na Fuvest e do Enem. “O problema vai ser se exames como a Fuvest seguirem uma linha e o currículo nacional seguir outra”, diz.
No ensino público paulista, Grécia e Roma também são ensinadas no 1º ano do ensino médio –as escolas estaduais de São Paulo seguem uma ementa que define o conteúdo que deve ser ensinado a cada bimestre.
Já no 2º ano do ensino médio da rede pública paulista estão Renascimento, sistemas coloniais europeus e Revolução Francesa -uma proposta bem diferente da elaborada pelo MEC.
Apesar da polêmica, as novidades do currículo de história até que podem ser consideradas moderadas. Para a diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, Neide Noffs, a base curricular seria realmente inovadora se fosse interdisciplinar.
“O MEC continua enxergando as disciplinas de maneira separada. História segue separada da geografia, da biologia. Tornar o ensino interdisciplinar e mais conectado com a realidade do aluno seria, sim, transformador”, afirma.
ESTADOS UNIDOS
Uma das inspirações para a construção de uma base curricular nacional vem de países como os Estados Unidos. Lá, o debate começou na década de 1990 –logo depois de a Constituição brasileira de 1988 incluir a fixação de “conteúdos mínimos para o ensino fundamental”. O currículo norte-americano, no entanto, veio antes: em 2010.
A proposta norte-americana traz as habilidades que os alunos devem ter ao final de ciclos de três anos.
Em história e estudos sociais, o currículo define, por exemplo, que os alunos do final do ensino médio têm de saber “diferenciar pontos de vista divergentes sobre um mesmo evento histórico”.
“Vamos percorrer um caminho já trilhado por quase todas as nações com bons resultados educacionais”, diz Denis Mizne, diretor-executivo da Fundação Lemann –instituição que encabeçou o “Movimento pela Base”.
A Lemann deve lançar, em breve, um relatório sobre a proposta do MEC para cada uma das disciplinas.
Assim como no Brasil, nos EUA muita gente torceu o nariz para o currículo comum. Alguns Estados, como a Carolina do Norte, não aceitaram a diretriz nacional e adotaram ementas próprias.
A proposta curricular ainda segue em discussão ao menos até meados de 2016 -a ideia inicial era que fosse encaminhada ao CNE (Conselho Nacional de Educação) até o final deste ano.
Em história, as mudanças no currículo não são consenso nem entre os especialistas do MEC. A ementa da disciplina atrasou e foi publicada depois das demais ementas, lançadas no início de setembro.
O ensino de história da África e da cultura afro-brasileira, no entanto, não é uma novidade da proposta do MEC. O tema já havia sido incluído, em 2003, na LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e, desde então, começou a fazer parte dos currículos.
O próprio Enem costuma trazer em média duas questões (de um total de 180) sobre história da África.
“Na história tradicional ensinada hoje, América e a África passam a existir a partir das colonizações europeias,” diz Silvio Freire, diretor do ensino médio do colégio Santa Maria. “Parece, porém, que a principal polêmica sobre o ensino de história na proposta curricular é que a determinação vem do governo.”
–
CURRÍCULO DE HISTÓRIA EM DEBATE
Proposta de ementa da base nacional curricular é alvo de críticas
Como é hoje
Escolas se baseiam em livros didáticos, que são escolhidos a partir de princípios da própria escola e do que cai nos grandes vestibulares e no Enem
Como será
Ideia é que 60% do conteúdo siga a proposta curricular do MEC e que o restante respeite regionalidades (como revoluções estaduais)
*
1988
Base nacional curricular consta no Artigo 210 da Constituição, que define que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental”
2015
Base é lançada em 30 de julho pelo MEC, com a proposta de ser discutida até o final do 1º semestre de 2016, antes de ser encaminhada ao Conselho Nacional de Educação
190 mil
Escolas públicas e particulares do Brasil serão afetadas com o novo currículo
2 milhões
De professores atuam nessas escolas
Folha de S.Paulo