Em português e árabe, o sheik gaúcho Rodrigo Rodrigues, de 38 anos, fala sobre a crise de refugiados sírios na Europa na mesquita do Pari, no centro de São Paulo, ao meio-dia de uma sexta-feira – compromisso para os muçulmanos equivalente à missa de domingo dos católicos.
“Alá não vai perguntar pessoa por pessoa: O que você fez lá no Iraque? O que você fez na Síria? O que você fez na Palestina? Porque não está em nossas mãos. Mas Alá vai perguntar a você: o seu coração estava com quem? Com a criança que morreu na praia, que poderia ser seu filho? Com as crianças em Burma (Mianmar), na África, no Haiti ou com os tiranos?”
Suas pregações têm feito cada vez mais sucesso entre muçulmanos em São Paulo. Segundo a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras), a oração da sexta-feira no Pari era frequentada por cerca de 300 pessoas há seis meses. Hoje, são cerca de 1.200.
Mas o jeito “moderno” do sheik também tem atraído mais brasileiros recém-convertidos à mesquita. Ensinando religião para adolescentes em uma escola islâmica na Vila Carrão, zona leste paulistana, ele usa gírias, tira selfies e diz nas redes sociais que “não basta ser professor, tem que ser da zoeira”.
No YouTube, ele publica vídeos com ensinamentos religiosos e conselhos. No Twitter, escreve principalmente em árabe para mais de 12 mil seguidores. No Facebook, alterna entre mensagens religiosas, memes e comentários sobre seu time preferido de futebol, o Internacional. Ainda tira dúvidas pelo WhatsApp e posta fotos da “zoeira” com os alunos e com seus filhos no Instagram.
“Procuro ser acessível para as pessoas por causa da dificuldade que tive no começo para encontrar um muçulmano que me ensinasse a religião”, disse à BBC Brasil.
“Quis criar um meio que desse às pessoas esse acesso a um sheik, que não tive. Eu queria ter alguém que me escutasse, me indicasse livros.”
‘Me chamavam de Saddam Hussein’
Rodrigues converteu-se ao Islã em 1991, ainda adolescente de família católica em Porto Alegre. “Meus pais estranharam, me levaram para psicólogo e tudo. Havia essa ideia de ‘o menino quer ser muçulmano, deve ser violento’. Mas o psicólogo disse ‘não, isso é coisa de jovem, normal'”, afirma.
O interesse pela religião, segundo ele, foi despertado pela guerra do Golfo (1990-1991), que teve início quando o Iraque, sob o comando de Saddam Hussein, invadiu o Kuwait. “Eu quis saber o que era aquele povo que estava sempre em guerra. Perguntava aos professores, comecei a ir na biblioteca pública, me fascinei e me converti assim, sozinho.”
“Eu sofri muito bullying no começo. Até meus professores me chamavam de Saddam Hussein e de Khomeini. Mas essa fase passou. Hoje a gente sofre e às vezes não percebe”, diz o sheik.
Rodrigues estava estudando no Catar quando ocorreram os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos. “Os sheiks falavam ‘isso não é problema nosso, não é com a gente, é problema dos americanos’. E comecei a questionar bastante o por quê disso.”
Preocupados com a impressão que seus questionamentos poderiam causar no país, que tem uma relação próxima com o governo americano, os professores o acabaram convencendo a voltar para o Brasil.
“Eu ficava querendo saber de tudo e acho que eles pensaram: ‘ele está tão empolgado que é melhor sair daqui, porque aqui vai acabar procurando problema’. Me disseram para amadurecer, focar nos estudos.”
“Na época pensei mal do professor que me dizia isso, mas hoje dou graças a Deus, e é um conselho que dou para os jovens também. Eles chegam falando de política e eu digo: ‘Rapaz, vá procurar um emprego, estudar para o Enem. Se as pessoas de lá estão vindo para cá porque não conseguem resolver a crise, o que faz um brasileiro daqui querendo ir para lá?.”
Em 2004, ele se tornou o primeiro brasileiro a estudar educação islâmica na Universidade King Saud, na Arábia Saudita. Hoje, diz que sua fase “revolucionária” ficou para trás, mas usa a experiência para aconselhar jovens convertidos.
“Já passei por todas essas fases que os brasileiros convertidos enfrentam. Querer construir uma mesquita, ir para um país árabe, islamizar o mundo árabe, separar árabes de brasileiros, querer ser revolucionários. Dou meu exemplo, converso. A gente tenta aconselhar, diz para procurar um psicólogo. Não é pecado, é muito bom fazer terapia”, afirma.
‘Tá me tirando?’
A tarefa de ensinar religião para adolescentes do ensino médio é “desafiadora”, segundo o sheik. “Eles acham que aula de religião é para zoar, para ver o sheik constrangido. Eu fazia muito isso com o padre na catequese, estou pagando o preço agora”, brinca.
Para constrangê-lo, os alunos fazem perguntas sobre namoro e sexo. Mas Rodrigues já tem a resposta pronta: “Eu digo ‘pergunta para seu pai e sua mãe, que eles fazem’. Aí eles ficam envergonhados e eu digo ‘o que é, rapaz, tá me tirando?’.”
Fotos dos adolescentes colando nas provas ou dormindo em sala costumam ir parar no Instagram do professor, com legendas como “pediu para ser zoado, né?”. “Claro que só boto ali porque sei que a diretora não tem Instagram”, assegura.
Além das dúvidas dos garotos, o sheik também diz conversar com as garotas sobre a posição da mulher na religião. “Há tabus porque os pais são árabes, mas os filhos já não são. E não viveram em sociedades árabes lá, mais paternalistas e machistas. No Brasil se vive de outro jeito”, diz.
“Por exemplo, em algumas sociedade muçulmanas, como na Arábia Saudita, a mulher não pode dirigir. Mas isso não é da religião. Isso é cultura, é tribalismo, é tabu. Tento falar para as meninas que elas tem que questionar mesmo, saber se é religião ou tabu. Não pode misturar.”
Segundo o sheik, mulheres e homens têm deveres e direitos iguais no islamismo.
“Em algumas famílias é assim: se a menina namorar é feio, mas se o menino namorar é menos feio. Eu digo que é feio igual. Assim como a mulher tem que se preservar, o homem tem que se preservar também. Tento falar para os jovens: não existe na religião algo que o homem pode e a mulher não pode.”
No entanto, as mulheres não podem casar-se com não muçulmanos, enquanto que os homens podem se relacionar com não praticantes da religião. “Aí não é tabu, é religioso”, defende. “A família muçulmana ainda é patriarcal. Ainda é a mulher que segue o homem.”
Viver com as diferenças
As posições conservadoras também já renderam ao sheik o apelido da moda no Brasil. “Alguns alunos me chamam de coxinha, porque me acham muito careta. Mas fazem isso pra zoar”, conta.
Rodrigues se opõe, por exemplo, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Também afirma que punições físicas e prisão para homossexuais e pessoas que cometem adultério estão dentro da lei islâmica – mas não podem ser aplicados por qualquer muçulmano, ou sem o procedimento legal correto.
“Na religião islâmica o adultério e o ‘homossexualismo’ [sic] são pecados gravíssimos, inclusive no código penal islâmico. Pode até haver condenação à morte. Mas isso é com a Justiça, não com as pessoas na rua, revoltadas. Para essas leis terem fundamento, tem que ter um um sistema judiciário islâmico completo, tem que ser pego em flagrante, ter quatro testemunhas, ter defesa e acusação. E nós não vivemos nesse sistema”, afirma.
Ele admite, no entanto, que em alguns países a lei islâmica é usada para perseguir cidadãos ou para justificar violência cometida por civis.
Os atos do grupo autodenominado “Estado Islâmico”, que realiza execuções de homossexuais e de pessoas que considera apóstatas (que se afastam da religião) também iriam contra o Islã, segundo Rodrigues.
“O ‘EI’ está tentando aplicar algo que eles acham que está na lei por si próprios. Mas que autoridade legal eles têm sobre a população para aplicar isso? Em um país em perturbação social e política, como é o Iraque, não se aplicam as leis islâmicas, porque não há autoridade legal estabelecida. Isso é um conceito religioso.”
Seu conselho para os pais muçulmanos de filhos homossexuais costuma, também, ir além do âmbito da religião.
“Se o rapaz ou a menina assumiu que é homossexual, enfrentou a sociedade, não vai deixar de ser. Eu falo: olha, é muita oração para que Deus o oriente e você tem que buscar um acompanhamento psicológico para aprender a conviver com isso”, diz.
A pregação sobre a tolerância com a diferença é um dos motivos do sucesso do sheik, de acordo com um representante da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil.
“Se perguntar o que eu acho de um homem casar com outro homem, vou dizer que é errado, é pecado. Mas se vêm dois vizinhos homossexuais pegar o elevador comigo eu vou quebrar o elevador pra prejudicar eles? Não. Se a gente se incomoda com a diferença, o problema está mais em nós do que nos outros”, afirma o sheik.
“A gente tem que ter simpatia e humildade para aceitar as diferenças, e as outras pessoas vão ver e vão nos aceitar também. Quando falo essas coisas para os alunos, eles dizem ‘agora o sheik não está mais coxinha’.”
Sem comida árabe
Na mesquita e nas redes sociais, Rodrigues diz que os países europeus e os Estados Unidos são os “principais responsáveis” por conflitos no Oriente Médio, mas também critica os países árabes e de maioria muçulmana que receberam poucos refugiados.
O sheik nega que suas críticas aos EUA e à Europa possam ser interpretadas como sinais de radicalismo.
“É raro ter pessoas que já vêm – desculpe a expressão – meio doidonas, com cabeça radical. Mas quando elas descobrem que aqui não tem nada de radical, ou decidem seguir o Islã ou se afastam, porque essa não é a nossa pregação”, diz.
Para Rodrigues, lembrar a todos que ele é brasileiro é essencial para evitar estereótipos sobre o Islã. “As pessoas perguntam: ‘Por que ele é convertido, mas tem esse nome, Rodrigo?’. Mas eu me converti ao islamismo, não me tornei um árabe. Eu nem gosto de comida árabe. Sou gaúcho, como churrasco”, revela.
“Um sheik saudita me disse: ‘se você quer voltar para o Brasil com a cabeça dos brasileiros, muito bom. Se quer voltar com a cabeça dos árabes, fica aqui. Deixe os árabes e leve só a religião dos árabes. Foi um grande conselho.”
“Estou mais preocupado que o dólar subiu do que com o ‘Estado Islâmico’. É isso que prego para as pessoas. Nós temos que viver nossa realidade. Nenhum católico vive pensando no Vaticano ou na Itália 24 horas. Vai ver o jogo do Corinthians, vai na pizzaria, vai zoar, seja normal”, diz.