MPT investiga máfia e encontra cachorros congelados em pastelaria chinesa

Ministério Público do Trabalho investiga máfia que alicia chineses para trabalho escravo

pastelaria chinesa

Um grupo de comerciantes chineses está na mira de procuradores do Ministério Público do Trabalho, no Rio. Eles são acusados de aliciar pessoas na cidade de Guangzhou, na província de Guagdong, e trazê-las para o Brasil, onde eram exploradas em regime de trabalho escravo. Três inquéritos que investigam a prática foram abertos desde 2013 e encaminhados à Justiça Federal — um está concluído e dois se encontram em andamento. Peças processuais obtidas com exclusividade pelo GLOBO mostram que chineses são convencidos a vir com propostas de salário de R$ 2 mil, moradia e alimentação de graça. Mas, ao chegar, recebem a notícia de que terão de trabalhar por pelo menos três anos sem receber pagamento em pastelarias da cidade para cobrir as despesas das passagens aéreas.

Antes de levarem os casos à Justiça Federal, procuradores do Ministério Público do Trabalho conseguiram firmar acordos com comerciantes denunciados para o pagamento de indenizações de cerca de R$ 200 mil às vítimas do esquema. Ameaçados pelos ex-patrões, alguns chineses foram inseridos em programas de proteção a testemunhas. Uma investigação já foi finalizada e resultou na prisão de um dos envolvidos no crime.

ATENÇÃO DENTRO DO AEROPORTO

A primeira denúncia sobre exploração de trabalho escravo de chineses encaminhada à Justiça Federal foi assinada pelo procurador Sérgio Luiz Pinel Dias e revela que a quadrilha tem acesso a áreas privativas do Aeroporto Internacional Galeão-Tom Jobim. Segundo o documento, há ‘‘atuação de extensa rede criminosa, certamente com ramificações no aparelho estatal’’. A Polícia Federal, responsável pelo setor de imigração, informou que não comenta investigações em andamento.

A mesma denúncia ressalta que um intérprete do consulado chinês foi apontado por uma das vítimas como conhecido de um dos comerciantes que integram o esquema. O funcionário teria tentado convencê-la a não levar o caso à frente. Questionado sobre a acusação, o consulado afirmou que não disponibiliza tradutores para depoimentos à polícia ou à Justiça. ‘‘Cada vez que um tribunal ou uma procuradoria nos encaminha uma solicitação formal pedindo um tradutor deste consulado, respondemos que não temos e não sugerimos tradutores. Pessoas envolvidas nos casos brasileiros têm de procurar, por sua conta, os tradutores’’, diz a nota da representação diplomática.

O caso que deu início às investigações é de 2013, quando o Ministério Público do Trabalho denunciou à Justiça Federal o chinês Van Ruilonc, de 32 anos, dono de uma pastelaria em Parada de Lucas. A vítima, que foi incluída em um programa de proteção, informou que recebeu, em Guangdong, uma oferta para trabalhar em um restaurante do Rio, onde receberia R$ 2 mil. Segundo ela, ao desembarcar na cidade, uma pessoa a recebeu no Galeão-Tom Jobim na área de entrega de bagagens. De acordo com a denúncia, um homem pegou seus documentos e, ‘‘superando as restrições de imigração, promoveu-lhe a entrada em território nacional’’.

A vítima era permanentemente vigiada e proibida de sair do local do trabalho. Exames de corpo de delito comprovaram a existência de castigos físicos, como pauladas, chibatadas e queimaduras com cigarros. Policiais encontraram a vítima, mantida em cárcere privado, graças a uma informação do Disque-Denúncia (2253-1177). A procuradora do Ministério Público do Trabalho Guadalupe Louro Couto, que acompanhou o caso, disse que ela dava expediente todos os dias das 5h30m às 23h, não recebia salário e era agredida.

— Assim como nos outros casos investigados, a vítima, quando chegou ao Rio, foi avisada que precisaria trabalhar de graça, por três anos, para repor o dinheiro da passagem. Ela foi inserida no programa de proteção depois de ficar internada no Hospital Getúlio Vargas, onde homens não identificados, com atitudes suspeitas, apareceram perguntando por ela — disse Guadalupe, informando que o comerciante acusado do crime também pagou indenização de R$ 80 mil.

ADOLESCENTE ERA MANTIDO EM CÁRCERE PRIVADO

Van Ruilonc foi condenado a oito anos e seis meses de prisão por tortura qualificada e crime de redução a condição análoga à de escravo. A procuradora não comentou a denúncia de possível envolvimento de um intérprete do consulado no caso.

O segundo inquérito foi aberto em setembro do ano passado, quando o Ministério Público do Trabalho foi informado, por um padre, que um adolescente chinês havia fugido de uma pastelaria na qual era mantido em cárcere privado, em Itaguaí. O jovem, de 17 anos, também se encontrava em estado degradante, de acordo com a denúncia. O dono do estabelecimento tem mais dez lojas no estado.

O adolescente contou que chegou ao Rio com outros cinco chineses e que um homem os aguardava no aeroporto. Os imigrantes foram levados de carro para um local não identificado, onde aliciadores dividiram o grupo. Segundo o jovem, ele nunca mais viu os companheiros de viagem. O procurador Marcelo José Fernandes da Silva confirmou que há uma investigação em segredo de Justiça. Por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta, a vítima receberá R$ 82 mil do ex-patrão.

O GLOBO também teve acesso a documentos de uma terceira investigação, iniciada em janeiro deste ano. O caso está sendo acompanhado pela procuradora Juliane Mobelli, que disse ter recebido por e-mail um denúncia de trabalho escravo numa pastelaria em Copacabana:

— O estabelecimento tinha 12 funcionários, dos quais três eram chineses. Eles recebiam tratamento diferente. Ao contrário dos brasileiros, não tinham salário e trabalhavam todos os dias.

Segundo o inquérito, a pastelaria pertence a dois casais de chineses. Questionados pelos procuradores, eles devolveram os passaportes e se comprometeram a regularizar a situação dos funcionários.

CÃES VIRARAM ‘RECHEIO’ DE SALGADOS

Em uma das pastelarias visitadas por procuradores e fiscais do Ministério Público do Trabalho, cachorros que haviam sido mortos a pauladas estavam congelados dentro de caixas de isopor, nos fundos do estabelecimento. Segundo participantes da operação, a carne dos animais, que eram guardados na lanchonete de Parada de Lucas, seria utilizada na produção de pastéis e outros salgados.

De acordo com o depoimento do dono do estabelecimento, que cumpre pena no Complexo do Gericinó, o uso de carne de cães na produção de pastéis é uma prática comum nas lanchonetes chinesas espalhadas pela cidade. Num primeiro momento, ele disse à polícia que não tinha conhecimento de que era proibido o abate desses animais no Brasil. Depois, admitiu que sabia se tratar de prática ilegal, tanto que recolhia os cachorros nas ruas da Zona Norte.

Segundo a procuradora Guadalupe Louro Couto, a descoberta causou angústia em toda equipe de fiscalização.

— Já vi muita coisa ruim, principalmente em trabalhos que realizei em fazendas do Mato Grosso. Mas o que encontrei naquela pastelaria foi o pior de tudo. Para começar, havia uma cela, como se fosse uma cadeia, com grades e cadeado, montada dentro da lanchonete, onde o trabalhador ficava encarcerado. Além disso, ele convivia com o cheiro dos cachorros mortos, que ficavam ao lado dele. Eu não aguentei. Quando senti o cheiro, comecei a passar mal e pedi para sair do estabelecimento. Ao abrimos as caixas de isopor, vimos os cachorros congelados. Ficamos perplexos. Foram vários os crimes cometidos ali — afirmou a procuradora.

O Globo